Convidei Patrícia
Galvão a ler comigo dois impressos recentemente chegados à minha mesa. Não
direi aos leitores tratar-se da célebre Pagu. Seria mentir descaradamente. A de
meu convívio nasceu em 1996 e mora em Fortaleza. Não sou dado a regressos no
tempo nem pratico o espiritismo. Além disso, tenho verdadeiro pavor de me
encontrar com personagens como Calígula, Lucrécia Bórgia ou Adolf Hitler. Os
opúsculos aos quais me refiro sãoA menina da chuva (Fortaleza:
Premius, 2013), do cearense Bruno Paulino, e Entre-textos (Porto
Alegre: Vidráguas, 2013), do carioca Luiz Otávio Oliani.
Faz pouco tempo, comentei o primeiro livro de Bruno Paulino. Gostei aqui,
desgostei ali; entusiasmei-me com isso, enfezei-me com aquilo. É sempre assim,
se não estamos diante de Fernando Pessoa, Kafka ou Machado de Assis. Patrícia
não é de só ouvir, caladinha, feito aluna bem comportada: “E agora, com ‘a
menina da chuva’, qual a sua visão do escritor?” Tentei brincar, mas logo
desisti: “Vejo, longe, garotinha toda ensopada, a chorar, encolhidinha. E o
malvado cronista a rir de sua invenção macabra”. Ela não sorriu e deve ter me
chamado de idiota.
Voltei à seriedade
de sempre: Embora não veja diferenças essenciais entre crônica e conto, percebi
em A menina da chuva vontade em Bruno de se aproximar de certo
modelo de relato curto: introspectivo, sem deixar de se referir a fatos, ações,
movimentos dos seres, como se vê na primeira estória. Vejamos este trecho:
‘Sentado na cadeira de balanço, no alpendre da casa-grande, o velho observa o
sol despertando na campina, depois de uma longa noite de chuva’. Ainda há
resquícios de crônica: a descrição e a narração do visto e ouvido. Nesse
aspecto, ainda se pode ver, com certa clareza, a diferença entre os dois
gêneros. Como neste segmento: ‘Vi uma senhora de cabelos brancos num
supermercado outro dia fazendo compras (ela comprava xampu). No meio de jovens,
crianças e velhos que também estavam no recinto fazendo compras’. Neste, o
demiurgo revela o próprio ato de olhar ou de ver, característico da crônica. Se
fosse ficção, o revelador do enredo simplesmente teria escrito: ‘Uma senhora de
cabelos brancos fazia compras num supermercado’.
A estudante se
mostrou exigente: “O conto é mais enxuto ou sintético, sendo a crônica menos
acanhada? Não há incongruência nisso? Pois a crônica quase nunca se estende
como a narrativa ficcional em seus vários formatos, à exceção dos mais
minúsculos”. Rendi-me aos seus argumentos: “Então sejamos menos polêmicos: a
segunda obra de Bruno está entre a crônica e o conto”. Patrícia me espicaçou,
outra vez: “Ele tende a evoluir da mera dissertação de caráter pessoal até
alcançar a fórmula da trama?” Tentei ser menos obscuro: “Não posso fazer
referência a evolução; talvez deva pensar apenas em passagem, no sentido de
movimento, dar outros passos, saltar o córrego, o riacho, decidir-se pela visão
próxima da opinião. Ou deixar a opinião de lado e se dedicar a narrar e
descrever. Ou preferir contar a reproduzir as formas dos corpos, as silhuetas,
as tintas. Ou expor os traços físicos ou mentais dentro da exposição objetiva
ou subjetiva dos fatos, movimentos, ações: ‘Contemplou o céu azul e viu
pássaros em voo lento, quase preguiçoso’. Patrícia pareceu ter gostado da
citação: “De quem é isto?” Fui inconvincente: “Não sei, quiçá de algum
versejador esquecido”.
Larguei o livrinho
de capa azul de Bruno e agarrei o Entre-textos. E não perdi tempo
com lengalenga: “Oliani é poeta de pura linhagem, se ainda se pode falar em
pureza, depois da devastação causada por esta palavra no discurso humano. Sua
linguagem nos remonta aos artífices da palavra. E ele sabe bem disso: ‘Toda
linguagem / é selva / a ser devastada // toda linguagem / é terra / a ser
adubada // toda linguagem é pedra/ a ser limada’. A jovem, de novo, mostrou
personalidade: “Ele usa alguns vocábulos evitáveis, sobretudo nestes tempos de
preservação da natureza (‘selva a ser devastada’). Quem sabe ficasse melhor:
‘selva a ser visitada’.
Não lhe dei
ouvidos: “Visível, do mesmo modo, é sua leitura da poesia contemporânea
brasileira, não exatamente os medalhões (existem medalhões na poesia brasileira
de hoje?). Você conhece alguns?” Ela se mostrou sincera: “Não muito notáveis
assim. Poderia chamar de bardos renomados ou de fino lavor, como se dizia
antigamente”. Brinquei: “E quem é você para se lembrar de antigamente?” Ela
entendeu a brincadeira e eu me senti disposto a me estender no assunto: “Alguns
deles são muito conhecidos no nosso meio e chegam a ser quase celebridades:
Antonio Carlos Secchin, Astrid Cabral, Ferreira Gullar, Olga Savary, Pedro
Lyra, Raquel Naveira, Tanussi Cardoso, se quisermos citar somente sete nomes”.
Ela quis outras informações: “Trata-se de antologia pessoal de Oliani? Ou de
seleta de cantos de diversos literatos brasileiros de hoje?” Não expliquei:
“Deixemos isso por conta e risco dos comentaristas menos apressados. Isto aqui
não vai além de menção à publicação, simples registro”. Ela não se rendeu ao
meu raciocínio: “O que é este livro então?” Precisei pensar em objetividade:
“Como explica Pedro Lyra, o menestrel Oliani simplesmente procurou composições
de outros autores e realizou associação de ideias com as de sua lavra”.
Dirigi-me até a
porta da sala, a fim de me orientar melhor. E ouvi certo sussurro maquiavélico:
“Oliani é bom poeta?” Não titubeei: “Ora se é. Nem precisa perguntar”. Ela me
incomodou novamente: “E os outros?” Voltei ao assento, disposto a ser bravo até
o fim: “São igualmente vates inspirados ou talentosos. Pelo menos, os poemas
reunidos no volume são merecedores de adjetivos pomposos. Antológico é um
deles, embora muito desgastado. Tudo virou antológico”.
Fortaleza,
fevereiro e abril de 2014.
por Nilto Maciel.
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