O livro de estreia de Bruno Paulino, intitulado Lá nas Marinheiras e outras crônicas,
encena, no seu conjunto, um tema muito caro aos escritores, sobretudo para
aqueles que se dedicam a escrita de crônicas, a saber, a passagem do tempo e
sua relação com o espaço.
A cidade de Quixeramobim é o cenário, o palco, o
público, os atores e as atrizes de um narrador dividido entre uma cidade
interiorana, quase mítica, distante, charmosa, cantada em verso e prosa pelos
mais velhos, pelos livros e pelas canções, e uma Quixeramobim contemporânea,
com os problemas sociais, econômicos e psicológicos de uma urbes em
desenvolvimento, aberta à industrialização e às mudanças bruscas de sentido.
A linguagem simples e escorreita de Bruno Paulino, na
realidade, esconde o conflito de um cronista provinciano que já não acredita
tanto na solidez e na continuidade da memória, do imaginário, dos hábitos e dos
costumes desta mesma província. Como o narrador vive este conflito e por Bruno
saber que a literatura não intenta resolver nada, a fatura das crônicas tende a
não cair nem num saudosismo piegas e elogioso ao tempo passado, nem numa
propaganda do futuro. Este equilíbrio, movido por aquela tensão, é essencial
para tornar o livro de Bruno um livro maduro, sem ingenuidades, embora, aqui,
acolá, o “cronista da província” vença e exalte a Quixeramobim que não existe
mais ou que, de fato, nunca existiu: “E de repente me dou conta que eu nasci
num mundo assim bem louco, cheio de tecnologia e facilidades (e desigualdades
também), pois quando me entendi por gente, o sertão já não era realmente o
mesmo daqueles que diziam “olhe, na minha época não era assim...”.
De certo modo, a expectativa de um leitor que se depara
na estante com o livro Lá nas marinheiras e outras crônicas, publicado por um
autor quixeramobiniense ou quixeamobiniano (não sei), é, possivelmente,
encontrar um livro de “coisas do sertão”, com personagens caricatos, em
situações pitorescas, rodando numa cidade cheia de improvisos. Como falei, a
expectativa é em parte frustrada, pois logo na primeira crônica, a que dá
título ao volume, o narrador confessa nunca ter matado passarinhos, de ser ruim
de pontaria, embora seu pai fosse exímio atirador de baladeira, para daí citar
Mário Quintana, Fausto Nilo e a obra de Cândido Portinari. Aliás, o livro é
recheado de referências a uma cultura letrada e metropolitana, são inúmeras as
citações ao repertório da música popular brasileira e a autores da literatura
ocidental, porém também são inúmeras as referências a figuras e pensamentos de
poetas populares ou de figuras do povo, como Quintino Cunha, Dona Carminha e um
tal Carro Velho (o rei dos elogios), “um sujeito arcaico-saudosista-tecnológico subjetivamente
qualificado”.
Este conflito temporal, sentido por um narrador
sensível que ainda se regojiza com a sombra de um pé de cajá, também perpassa a
linguagem do cronista. Aqui, está, talvez, a encenação maior das contradições
por que passa a persona criado por Bruno Paulino. Como, no nível da linguagem,
equilibrar o lirismo próprio das recordações idílicas com o niilismo
contemporâneo? Principalmente nas crônicas familiares a linguagem não escapa de
certo travo romântico: “Essa é a historia de meus avós paternos, com a
espontaneidade de uma conversa de alpendre meu pai a narrou para mim num fim de
tarde, norteando-se por juazeiros, no ritmo dos riachos, percorrendo brenhas,
procurando rastros nos caminhos e nas veredas da memória, como se a historia
tivesse ali - posta em colcha de retalhos - e pudesse ser manipulada por suas
palavras. E assim foi”. Por outro lado, a graça do livro está nesta liberdade
em trabalhar o local e a expectativa local com desconfiança.
Ao lado desta tensão, o livro gera também interesse por
trazer recortes da história de Quixeramobim, como as cheias, a vinda de Manuel Bandeira
para se tratar de tuberculose, a visita recente de Ariano Suassuna à cidade, os
sete anos de estadia do poeta e rábula Quintino Cunha, além da valorização da
zona rural, como o poço Marinheiras e a Serra do Cruzeiro. Em tempos em que a
memória está cada vez mais curta e as pessoas não têm mais tanta paciência de
ouvir umas as outras, o livro de Bruno resiste: “Das historias, uma contadora,
Dona Carminha também discute e opina sobre coisa séria como preservação do
patrimônio histórico de nossa cidade, incluindo o recente caso da demolição do
prédio da antiga farmácia localizada no centro da cidade, deixa sua sabia
opinião: “Eu era menina já conhecia a Farmácia São Pedro daquele jeito, o que
dinheiro num faz né?” E ri, em compaixão, dos que produzem monumentos de
concretos, em vez de castelos de memórias onde se erguem verdadeiras fortalezas
de amor ao próximo, esculpidas delicadamente por almas suaves como a de Dona
Carminha”.
Dizem que um escritor só se torna escritor a partir do
segundo livro, porque é sinal de que ele não desistiu. Se Bruno insistir (como
ele deve e eu acredito) o seu maior desafio será aprofundar estas contradições
no nível da linguagem, torná-la mais visceral, contundente, irônica, dúbia,
pois ele tem nas mãos, além do talento, um foco muito interessante para se
trabalhar, mas isto só o Tempo (Cronos) poderá devorá-lo.
Por Rodrigo Marques. Poeta e Professor, autor de Fazendinha (2005) e O livro de Marta (2011).
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