Dias desses li o livro Lá
nas Marinheiras e outras crônicas(2012), de Bruno Paulino. O livro contém vinte
crônicas que tratam de tudo aquilo que uma crônica pode tratar (se é que existe
algo que não possa ser tratado em uma crônica). Os textos de Bruno Paulino são
de agradável leitura, embora ainda careçam de uma maturidade que o próprio
autor ainda não possui. Embora ainda muito jovem, Paulino já demonstra
determinação, vontade e empenho tão necessários àqueles que desejam palmilhar
os caminhos da escrita. Suas crônicas, no entanto, não pecam pela imaturidade
do autor e, a continuar produzindo, a escrita de Bruno Paulino avançará a
passos largos em direção à maturidade literária que, deixemos claro, não está
associada à idade; mas ao tempo, à experimentação e à prática; pois como aquele
ourives do poema do Bilac, o escritor precisa escrever, escrever, escrever mais
e escrever melhor. Ao escritor, menos inspiração, mais transpiração. Escrever,
escrever e escrever! Melhor que publicar é escrever. Muitas vezes é preciso
deixar que os textos dormitem em pastas, mesas e gavetas, para que possam
apurar seu sabor e sua textura. Só assim, estarão prontos para serem sorvidos
em toda sua essência.
A crônica de Bruno Paulino é
eivada da mais bela cor local. No seu texto, transitam livremente suas memórias
de seres, coisas e lugares. E pelas linhas e entrelinhas do jovem cronista
passam seu avô poeta, dona Carminha, Manuel Bandeira, Ariano Suassuna, Quintino
Cunha e, obviamente, uma das grandes paixões do autor, o compositor Chico
Buarque. Os textos do autor são ambientados em Quixeramobim, cidade natal do
cronista, mas também de Antonio Conselheiro e Fausto Nilo. Sombreados
aqui e ali, pelo menos na memória do cronista, por frondosos pés de juazeiros e
cajás. E quando já é noite, o vento Aracati surge, amenizando a “quentura
medonha”, fazendo um bruto sucesso em Quixeramobim,aquela partezinha da chamada
área Q. E se perguntarmos do que o cronista tem fome, arriscaria dizer que sua
fome é de exteriorizar o que sente, o que vê, o que o entedia. E assim, como
todo bom escritor, Bruno Paulino sente vontade de escrever cada vez mais
e, escrevendo cada vez mais, se inserirá no rol daqueles que sabem que o
caminho, inclusive o da literatura, se faz mesmo é no caminhar.
E se para muitos a crônica
nada mais é do que “a prima pobre” dos demais gêneros literários, para Antonio
Candido é exatamente a “simplicidade” contida no seu fazer, que a enaltece como
gênero. É o que afirma o crítico em seu texto A crônica ao rés-do-chão:
A crônica não é um “gênero
maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe
dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se
pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse.
Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.
“Graças a Deus”, seria o
caso de dizer, porque sendo assim ela fica mais perto de nós. E para muitos
pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para
a literatura, como dizem os quatro cronistas deste livro na linda introdução ao
primeiro volume da série. Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de
coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de
todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao
nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta
humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão
certa profundidade de significado e certo acabamento de forma, que de repente
podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.
(CANDIDO: 1992: 13)
E assim sendo, é com
satisfação que a literatura brasileira recebe A menina da chuva (2013),
o segundo livro de Bruno Paulino. O livro traz vinte e oito crônicas em uma
edição muito bem trabalhada, publicado sob o selo da editora Premius, com
prefácio do escritor Diogo Fontenelle. No que concerne à temática das crônicas
da obra em questão, o autor se mantém fiel a alguns temas que lhe são por
demais importantes. E assim sendo, é a sua Macondo-Quixeramobim que ocupa
grande parte dos textos ali contidos. Pela pena do cronista se desenham e se
transmutam o homem (p.25), a menina (p.17, p. 45), a chuva (p.17), a infância
p.49), os livros (p.73), as madrugadas insones (p. 97), o amor (p.121) e a
cidade (125), entre outras. A linguagem do autor é simples e fluida como se
espera da linguagem constitutiva de uma crônica. E assim sendo, pelo texto de
Bruno Paulino quase vemos a menina-mulher correr sob a chuva em um desvario
alucinado de infância, a se banhar na praça da igreja Matriz com suas bicas de
jacarés.
Na crônica Cativando livros,
cativando pessoas (p.73), o cronista nos diz da sua sobrinha e sua relação com
os livros. No caso,O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupery. E como uma madeleine
proustiana, a crônica de Bruno Paulino me levou a lembrar que as pessoas que
gostam de livros costumam comprá-los aos montes, quase no metro, no quilo. Onde
vão colocá-los ou quando vão lê-los são questões nas quais não pensam de
imediato. O bom mesmo é ter o livro. Melhor ainda é poder cheirá-lo, sair com
ele, passear, mostrá-lo aos amigos, amantes também de livros; esperando por
aquele rápido momento em que a inveja surgirá em algum, quase imperceptível,
gesto de mão, olhos ou bocas.
Quem realmente gosta de livros, adora dá-los de presente, bem como recebê-los. Minha pessoa ainda não consegue vislumbrar, no entanto, a ação de dar um livro digital de presente a alguém. E, por enquanto, também não tenho interesse em recebê-los. Sabendo disso, alguns amigos continuam me presenteando com livros físicos. Se conseguirei ler todos os livros que ganho e compro antes de morrer? Sinceramente não tenho a menor preocupação em relação a isso. O que bem sei é que, de uma forma ou outra eles continuam chegando e, cada um ao seu jeito, vão se chegando aqui, se amontoando ali. E assim, vão ficando e fazendo parte da família. Concordo quando o cronista afirma ser necessário cativar livros, uma vez que livros cativam pessoas, gente, gentileza. Nessa pegada, quem sabe, como bem deseja o autor, não cativamos um mundo melhor?
A crônica é, então, uma
forma de texto capaz de registrar o cotidiano em toda a sua capacidade de
desvelar o que se esconde, bem como aquilo que se dá, deliberadamente, aos
olhos. E se nos fosse cobrada uma possível definição para a crônica, optaríamos
por aquela que nos oferece Jorge de Sá:
Na crônica, embora não haja
a densidade do conto, existe a liberdade do cronista. Ele pode transmitir a
aparência de superficialidade para desenvolver o seu tema, o que também
acontece como se fosse “por acaso”. No entanto o escritor sabe que esse “acaso”
não funciona na construção de um texto literário (e a crônica também é
literatura), pois o artista que deseje cumprir sua função primordial de antena
do seu povo, captando tudo aquilo que nós outros não estamos aparelhados
para depreender, terá que explorar as potencialidades da língua, buscando uma
construção frasal que provoque significações várias (mas não gratuitas ou
ocasionais), descortinando para o público uma paisagem até então obscurecida ou
ignorada por completo. (Sá, 1985: 09-10)
Atento aos meandros exigidos na feitura da crônica, Bruno Paulino tem demonstrado estar no caminho certo, no que diz respeito a ver o mundo com olhos de quem sente, de quem sofre e de quem ama; mostrando-se pronto para registrar a vida, sem ser necessário adormecer para que se possa acordar de um encanto, pois o encantamento consiste mesmo é nas acontecências do dia-a-dia, no estar vivo; atento a tudo aquilo que nos circunda, nos olha, nos sente, nos lê e, inevitavelmente, nos escreve e nos devora.
Por Carlos Carvalho, pesquisador e mestre em Literatura Brasileira, professor da
Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Serão Central (Feclesc), autor do
livro de crônicas Memória de Peixe.
Conheça o Blog: www.blogdocarloscarvalho.blogspot.com.br/
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